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terça-feira, 21 de outubro de 2014

Choque Rosa: Por que fingem que a Homotransfobia não existe?

Em Neon: terça-feira, 21 de outubro de 2014



Propus em meu último (e longo) texto uma analítica do apagamento da homofobia, entretanto, alguns leitores me pediram que eu aprofundasse o tema, e escrevesse especificamente sobre estes mecanismos de apagamento da homofobia, conforme explicitei no texto “O poder da heteronorma: quem o sustenta é a homofobia”.

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Uma rápida olhada em notícias sobre os crimes de homotransfobia nos permite observar as tantas tentativas de negá-los, não em sua materialidade, mas em sua motivação. Estes crimes são equiparados, pela mídia, a outros assassinatos, recebendo destaque, geralmente, como ilustrações perversas do estereótipo “demonizador” do homossexual, da travesti e dos “desviantes da heterossexualidade”: o gay promíscuo, a travesti que se prostitui, o gay problemático, desonesto, mentiroso...

Penso, contudo, que antes de analisarmos mais detidamente os mecanismos de apagamento da homotransfobia, seja importante definirmos que, na perspectiva deste texto, homotransfobia trata-se de qualquer atitude de preconceito, ódio, discriminação, ridicularização, violência física, verbal ou simbólica, humilhação e segregação contra pessoas LGBT. Não se trata apenas, portanto, de “homofobia” em sentido etimológico (medo ou aversão), e nem tampouco de homofobia, apenas em suas manifestações extremas de agressão física e assassinato.

Segundo Daniel Borrillo (foto) a homofobia em geral denuncia “desvios e deslizes do masculino em direção ao feminino e vice-versa, de tal maneira que se opera uma espécie de atualização constante nos indivíduos, lembrando-os de seu “gênero certo”. Toda suspeita de homossexualidade parece soar como uma traição capaz de questionar a identidade mais profunda do ser” (BORRILLO, 2009). Tal afirmação é necessária, pois neste texto – a título de simplificação – usarei “homotransfobia” como hiperônimo representante da violência e discriminação em relação a toda forma de desvio de orientação sexual e identidade de gênero, em relação à norma cis-heterossexual. Ressalto, entretanto, que existem especificidades dentro do conceito de homotransfobia, tais quais a lesbofobia, a bifobia, gayfobia, a transfobia, a travestifobia, entre outros.

Isso posto, e considerando a abrangência da definição de homotransfobia, fica evidente que os jornais noticiam apenas os crimes homofóbicos, ou os atos homofóbicos, quando estes tomam a dimensão da agressão física, ou dos atos de morte. E este é, portanto, o primeiro mecanismo de apagamento da homotransfobia. Entretanto, ainda que sejam noticiados, são geralmente associados a crimes passionais não-homofóbicos, pois as mídias tendem a buscar fatores atenuantes como, por exemplo, um possível relacionamento entre agressor e vítima, pressupondo que este relacionamento seria o suficiente para retirar o crime da categoria de “homotransfóbico”, essa passionalização e atenuação do crime constituem, pois, o segundo dos mecanismos de apagamento da homofobia.  Há ainda o processo de culpabilização da vítima, colocando-a em um “grupo de risco”, no sentido de que seu estilo de vida promíscuo (sic) e descuidado conduziram-na àquela situação de violência, e não que a homotransfobia exista em si, como condição de vulnerabilização e risco de pessoas LGBT, sendo, portanto, o terceiro fator de apagamento da homotransfobia. O quarto mecanismo de apagamento compreende a subjetivação e a individualização do agressor, nestes casos, frente a um crime inegavelmente homotransfóbico (geralmente quando há uma carta do agressor demonstrando seu ódio explícito), a homotransfobia é convertida em ato subjetivo, pessoal e patológico daquele agressor, desonerando, pois, a sociedade, de sua responsabilidade na produção de subjetividades e ações homotransfóbicas.

Os mecanismos de apagamento são, portanto: Redução a manifestação máxima, passionalização, culpabilização e subjetivização no agressor.

Subjetivização do crime no agressor
Há casos em que o crime homotransfóbico é inegável; casos como, por exemplo, a cerimônia de purificação à qual foi submetida o jovem de 19 anos em Betim-MG: ele foi sequestrado e queimado em um ritual de purificação de sua homossexualidade, ao seu lado foi encontrada uma carta que dizia “limpeza em Betim e trazer o fogo da purificação a cada um que andar nas ruas declarando seu ‘amor’ bestial”. A vítima sobreviveu, e havia ainda uma carta. Não era possível negar a existência de um crime homotransfóbico, entretanto, ainda assim os mecanismos de apagamento se põem em ação, neste caso, a subjetivização da violência. Como assim?

Desconsidera-se, em casos assim, a existência de uma violência homotransfóbica sistêmica e admite-se que exista, de maneira isolada, por parte de algumas pessoas ou grupos (geralmente skin-heads ou fundamentalistas fanáticos patológicos), atitudes patológicas de homotransfobia.

Superficialmente, os que assim se manifestam parecem indicar que de fato há homotransfobia, parecem solidarizar-se com a causa, entretanto recorrem a este tão perigoso ardil, negar que aquele crime é produto de uma violência sistêmica, e não apenas um dado isolado. O que não é o caso, uma vez que a carta deixada ao lado do jovem de Betim indica que há pressupostos de ordem moral, e de ordem religiosa que fundamentam tal ação, quais sejam:
1- A necessidade de purificação do homossexual, visto, portanto, como impuro, como sujo, como praticante do “amor bestial”. Esta não é, certamente uma afirmação inocente ou patológica, ela deriva, diretamente do discurso de ódio fundamentalista, pregado por pessoas como o pastor, que convida todos a salvarem a família do mal do “homossexualismo”(sic), ou de pessoas como a “psicóloga” que propõe “curar o homossexualismo”, ou ainda, de discursos como o deputado  que propõe “uns tapas” nos meninos afeminados para que se tornem homens;
2- A purificação não ocorre somente pela homossexualidade, mas por “declarar publicamente” seu “amor bestial”, ou seja, a declaração pública, a enunciação pública da homossexualidade, revela-se enquanto afronta que necessitaria ser combatida. Em que isso afronta subjetivamente os agressores? Afronta a “normalidade”, compreendida aqui, como um regime em que a heterossexualidade é categorizada como “normal”. A homossexualidade como “desvio” ou “bestialidade”. Ideias e noções como essas não emergem patologicamente nas pessoas, elas são produto de séculos de discursos guetificadores, patologizadores e estigmatizadores da homossexualidade.
3- Ainda com relação a “declarar publicamente” a homossexualidade, é inferir que se não fosse publicamente declarada não haveria, portanto, necessidade de purificação. Ele deveria aprender a não declarar publicamente, e não aprender a não ser homossexual. Este fato sugere, portanto, que havia ali a preocupação com o rompimento de uma “ordem social”, com o rompimento de um sistema de hierarquização da homossexualidade.

Deste modo, percebemos que há, frente à inegabilidade do crime homofóbico, a tentativa de subjetivação e individualização do ímpeto violento, ao invés de compreendê-lo como produto da violência homotransfóbica sistêmica. Esta dimensão da subjetivação é um fenômeno típico do cinismo do politicamente correto de nossos tempos. Não se admite que “eu possa ser preconceituoso”, ou “eu possa ser homotransfóbico”, este mal reside no outro, reside no agressor, e não no sistema, com o qual eu corroboro e o qual eu sustento.

Culpabilização da vítima de homotransfobia
Este recurso de apagamento é talvez o mais conhecido. Ocorre não apenas com as vítimas da homotransfobia, mas também com vítimas de estupro, com mulheres vítimas da violência doméstica, ou com jovens negros, vítimas de linchamento e tortura em postes na rua.  Este mecanismo consiste em transformar a vítima, ou suas rotinas e hábitos como culpados pelo crime, como tendo sido motivadores da condição de violência.

Exemplo da culpabilização ocorreu com a abordagem do colunista da Veja, Rodrigo Constantino, acerca da morte de João Donati (foto). Rodrigo associa a morte aos “hábitos promíscuos” do mundo gay, pois João estava fazendo sexo com seu agressor em um terreno baldio.

Entretanto, esta abordagem não considera aspectos relevantes, tais como:
1- Por que João estava em um terreno baldio? A resposta é evidente: a homossexualidade, quando considerada como pecado-perversão-patologia, é guetificada, ou seja, não se permite que ela se revele publicamente, então os amores, os afetos homossexuais foram, por muito tempo, obrigados a viver escondidos. O sexo é, muitas vezes, feito nos becos, nos terrenos baldios, nos banheiros do metrô. Pela madrugada, ocultado pelo insulfilme dos carros. O homossexual, dada a homofobia, raramente tem a oportunidade de “namorar no sofá”. As relações, os desejos são, por longo tempo, escondidos e revelados em ambientes perigosos e sujos. Não por preferência, mas geralmente, por ausência de opção;
2- O agressor, segundo ele mesmo, matou João, pois ele queria ser "o ativo", ou seja, há aqui um processo de homofobia internalizada e gayfobia evidentes. "Ser o ativo" é, social e arbitrariamente, compreendido como "manter-se 'homem' na relação", que deve ser, para tanto: não afetiva, não publicizada, não assumida, e plenamente "armariada". A possibilidade de "ser passivo", para aquele que agrediu João, representava o extremo da subversão e rompimento da própria "identidade" de virilidade e masculinidade. Aqui, mais uma vez eu pergunto: De onde vem a ideia de virilidade como sinônimo da prática ativa? Não seria esta uma normatização (socialmente construída) das condutas sexuais fundamentadas no papel do homem como o invasor fálico, e do feminino, ou afeminado, como o dominado pelo falo do outro?

Quanto à culpabilização da vítima há um segundo processo, a culpabilização categórica, baseada, geralmente, na teoria freudiana do espelho. Esta forma de culpabilização parece sugerir que todo homofóbico é, necessariamente, um homossexual enrustido, ou seja, que ele "agride no outro o medo que tem de sua própria homossexualidade", não duvido que alguns casos sejam assim, entretanto não é possível construir essa generalização no sentido de que isto significaria que a homofobia seria sempre produzida por homossexuais culpando, deste modo, toda uma classe de pessoas, pela violência sofrida por elas mesmas.

A filósofa Judith Butler (foto), no documentário "Filósofa en todo género", conta-nos acerca de um rapaz que vivia no bairro do Maine, nos EUA, desde que nascera. Este garoto andava de forma distinta dos demais garotos, ele "rebolava" (comportamento ao caminhar tipicamente associado a mulheres, ou ao feminino e, portanto, inadmissível na constituição do ser social masculino). O rapaz passou, então, a ser humilhado pelos demais garotos da cidade até que, dois ou três destes garotos interromperam a caminhada do rapaz, brigaram com ele e o atiraram da ponte. Para Judith Butler, este ato de violência representa um profundo medo ou pânico, de subversão das normas de gênero, ou seja, da determinação do que deve e pode ser feito por um homem ou não. De maneira marcadamente distinta da teoria freudiana, Butler indica que há uma tentativa, não de "matar a homossexualidade do outro, por medo da minha", mas de pôr fim à subversão. Seria a homotransfobia, portanto, um mecanismo de "sustentação da ordem". Este é um fato desconsiderado pelos que advogam a culpabilização categórica.

Passionalização do crime homofóbico
Este mecanismo de apagamento da homofobia consiste no desvio da motivação do crime e na desconsideração das possibilidades de homofobia internalizada, como no caso João Donati.  O desvio do crime homofóbico para o crime passional não-homofóbico, se dá transformando a motivação da violência em questão de âmbito interno da relação entre agressor e vítima quando há, entre os dois, algum tipo de envolvimento amoroso/sexual.

Desta forma, o crime passa a ser motivado por "ciúmes", por interesses econômicos, e por uma série de razões que são aparentemente não-homofóbicas, entretanto tais afirmações não consideram o questionamento básico: Qual a relação de poder entre ambos os "parceiros" que permite que um exerça sobre o outro o poder da violência, o poder da morte?

É evidente que há desigualdade de força e potência entre ambos, ou seja, que o agressor sente-se, por alguma razão, no direito de matar, torturar ou agredir o outro. Pensemos, por exemplo, nos casos das travestis que se prostituem e são assassinadas por seus clientes. Geralmente estes casos são negados pela passionalização do crime (e culpabilização da vítima) por meio da construção de atenuantes ao ato do agressor, entretanto a condição de "travesti", portanto, identidade social – em que a afirmação da humanidade é ainda um desafio (são, geralmente tratadas como abjeções) – é que permite que se exerça tal violência sobre ela.

Masculinizado e afeminado, os papéis parecem ainda definir quem tem mais ou menos direitos nas relações homoafetivas
Assim como no caso João Donati, o homem viril e ativo, ou seja, consciente de sua suposta superioridade em relação ao homem gay afeminado, sente-se no direito de matar o parceiro sexual. Há nisso, obviamente, um processo de hierarquização e relação de poder dentro das relações afetivas, pautado não apenas por questões passionais (ciúmes ou algo que o valha), mas como produto da permissividade da violência homofóbica sistêmica e da vulnerabilização e objetificação dos desviantes da norma cis-heterossexual?

É evidente que existem crimes passionais homotransfóbicos, entretanto, eles não deixam de ser crimes homofóbicos por serem passionais. Eis a falácia e o apagamento deste jogo do discurso midiático.

Redução a manifestação máxima da homotransfobia
A redução à manifestação máxima compreende o entendimento da homotransfobia apenas quando há morte ou agressão física evidente e inegável de crime homotransfóbico, ou seja, nega a existência de formas simbólicas, psicológicas e discursivas da homotransfobia.

Neste caso, afirmações de patologização da homossexualidade, de objetificação das mulheres trans, da negação da identidade de homens trans, das agressões verbais do bullying homofóbico, das falas segregatórias como a do ex-presidenciável Levy Fidelix são convertidas em “direito de expressão” ou seja, não se tratam de homotransfobia, mas do simples exercício de opinião.

O que tal abordagem desconsidera é que este discurso de ódio, fantasiado de liberdade de expressão, assim como as agressões verbais, as piadas homotransfóbicas, constroem um universo discursivo que reforça a hierarquização das sexualidades e dos papeis de gênero, bem como a negação, sobretudo no caso das pessoas trans, de sua humanidade.

É fundamental considerar ainda os danos causados pelas formas verbais e simbólicas de homotransfobia às suas vítimas: os problemas psicológicos, a fobia social, os casos de disforia, depressão e suicídio. Sim, há suicídios por homotransfobia, afinal, crescer em um mundo que prega sua anormalidade e inadequação contribui para a homotransfobia internalizada.

Quando algumas pessoas dizem "não sou homofóbico, não agrido homossexuais" elas fazem justamente isso, constrói o apagamento da homotransfobia, enunciando que ela só pode existir no ato de morte, e não nos atos de fala, nos atos performativos ou no discurso.

Multiplicidade dos mecanismos de apagamento
É importante considerar que esta divisão em 4 mecanismos de apagamentos é didática pois que, quando estão em ação, são geralmente conjugados e utilizados ao mesmo tempo para o apagamento do crime homofóbico. Como já sugeri no texto que antecede este, é preciso pensar: Por que há tanto interesse em apagar e negar a homotransfobia?

Imagens: Internet

Por: Fernando Vieira

Fernando, tem 23 anos é gay genderfluid, ativista LGBT, professor de Língua Portuguesa, e atualmente dedica-se aos Estudos de Gênero da Teoria Queer. Tem influências de Deleuze e Foucault, e lhe agrada Slavoj Zizek e Lacan. Busca simplificar o obscuro jargão pós-moderno, e deseja, com seus textos, propor reflexões que possam produzir caminhos.

 
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