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A cena do beijo em questão foi de uma delicadeza e sensibilidade ímpares. Ao contrário de cenas de outras novelas, foi ao ar sem alarde, sem burburinho da imprensa, de maneira natural, pegando o espectador de surpresa. Nada mais pertinente que duas companheiras que se amam e são casadas há décadas, manifestem seu afeto com um beijo. Simples assim? Nem um pouco. Para chegar a esse naturalismo, muitos outros casais gays enfrentaram o julgamento e a resistência de uma sociedade que ainda amadurece a duras penas.
O assunto não é novo. Em 1974, duas relações homossexuais, uma masculina e uma feminina já eram insinuadas na novela “O rebu”, de Braulio Pedroso: Conrad Mahler e Cauê (Ziembiensky e Buza Ferraz) e Glorinha e Roberta (Isabel Ribeiro e Regina Viana). Em “Brilhante” (1981), de Gilberto Braga, a homossexualidade do personagem Inácio (Denis Carvalho), chegou a ser insinuada, mas logo foi apagada da trama, devido à forte censura vigente na época. Anos depois, em “Vale Tudo” (1988), o mesmo Gilberto Braga emplaca o casal Laís e Cecília (Cristina Prochaska e Lala Deheinzelin). Mesmo tendo uma união estável, Laís teve que lutar contra Marco Aurélio (Reginaldo Faria), para receber a herança deixada para ela por Cecília após sua morte. Mas o subtexto ainda prevalecia sobre o texto.
Na novela “Mico Preto”, de 1990, um casal gay vivido por Miguel Falabella e Marcelo Picchi já tinha dado o que falar. Mas os primeiros a ter grande repercussão popular em uma novela foram Sandro e Jefferson (André Gonçalves e Lui Mendes) em “A próxima vítima” (1995), de Silvio de Abreu. Apesar de o ator André Gonçalves ter sofrido alguma hostilidade nas ruas, o casal foi bem aceito e a relação dos dois foi abordada abertamente na novela. A maior ousadia foi mostrar o quarto deles com a cama de casal, sob os olhares cúmplices das mães. Sorte igual não tiveram Leila e Rafaela (Silvia Pfeiffer e Christiane Torloni) em “Torre de Babel” (1998). O casal foi rejeitado pelo público e as duas acabaram morrendo na explosão do shopping, que matou vários personagens da novela.
Depois disso, outros casais ganharam a simpatia e a torcida do público, como Clara e Rafaela (Aline Moraes e Paula Picarelli) em “Mulheres Apaixonadas” (2003), de Manoel Carlos, que até chegaram a trocar um beijo no último capítulo, mas dentro do contexto de um espetáculo teatral. Em “Senhora do Destino” (2004), de Aguinaldo Silva, Eleonora e Jenifer (Milla Christie e Bárbara Borges) chegaram até a adotar uma criança, mas o tão esperado beijo acabou não acontecendo.
Em “América” (2005), de Gloria Perez, o beijo entre Junior e Zeca (Bruno Gagliasso e Erom Cordeiro) chegou até a ser gravado e ganhou uma efusiva torcida, mas acabou não indo ao ar no último capítulo. Desde então, criou-se uma enorme expectativa sobre o tão esperado beijo gay em uma novela, até que em 2011, na novela “Amor e Revolução”, de Tiago Santiago, as personagens Marina e Marcela (Luciana Vendramini e Gisele Tigre) trocaram um longo e apaixonado beijo. Infelizmente, a novela do SBT teve pouca repercussão e pouca gente testemunhou o momento histórico. A grande catarse mesmo veio em fevereiro de 2014, na novela “Amor à vida”, de Walcyr Carrasco, com o beijo entre Felix e Nico (Mateus Solano e Tiago Fragoso). Enfim, nos libertamos desse apelo e, politicamente, o beijo representou um avanço gigante em nossa teledramaturgia. Nessa linha evolutiva, teve beijo com direito a casamento na novela “Em Família” (2014), de Manoel Carlos. As personagens em questão eram Clara e Marina, vividas por Giovanna Antonelli e Tainá Muller.
Enfim, chegamos no tempo presente e, ao que parece, os beijos não serão economizados nas cenas das personagens de “Babilônia”. Doa a quem doer, já passou da hora de um beijo gay deixar de ser beijo gay para ser apenas um beijo, como qualquer outro. Idiossincrasias à parte, a telenovela é o espelho da sociedade e como tal, deve retratar a sociedade como um todo. Queiram ou não os moralistas, os gays existem como cidadãos, pagam os mesmos impostos e não estão mais dispostos a ficarem à margem da sociedade. E nossa teledramaturgia vem, cada vez mais, entendendo isso.
Voltando a questão do racismo, depois do romance inter-racial daquele longínquo 1984, outros casais inter-raciais surgiram e conquistaram a simpatia do público e atrizes negras passaram a protagonizar novelas, como Taís Araújo em “Xica da Silva” (1996) e “Da cor do pecado”(2004).
Enfim, a exemplo da questão do negro que, embora tenha um longo caminho a percorrer, já conquistou inegáveis avanços, a torcida é que, para que os comentários infelizes e discriminatórios sobre o amor gay entre duas senhoras passem a ser considerados tão absurdos como o comentário feito há 30 anos atrás sobre o amor inter-racial de “Corpo a Corpo”. Apesar de algumas reações retrogradas à trama de “Babilônia”, também surgiram muitos comentários favoráveis à abordagem da trama. Ainda que parte da sociedade tenha uma incrível dificuldade em aceitar as diferenças e mesmo correndo o risco de ser chamado de otimista incurável, noto uma certa evolução quando o público revê seus conceitos e, aos poucos, vai abrindo espaço para o novo. A passos lentos sim, mas de alguma forma, estamos evoluindo. “Babilônia” representa um avanço gigante, ao deslocar o beijo gay do lugar do folclore, do espetáculo, do mero evento, para torná-lo natural e legítimo.
E antes que eu me esqueça, obrigado, Gilberto Braga, obrigado valentes autores, por continuarem rompendo paradigmas. Vamos em frente!
Fotos: Divulgação Rede Globo / Reprodução
Por: Vitor de Oliveira - CLIQUE AQUI e leia mais artigos de Vitor de Oliveira
Vitor é Roteirista, escritor, professor e dramaturgo. Criador do blog “Eu prefiro melão”, um dos pioneiros a publicar textos de conteúdo próprio voltado para o universo da teledramaturgia, que deu origem ao seu primeiro livro “Eu prefiro melão – melhores momentos de um blog televisivo”. Colaborador da nova versão de “O astro” (2011), novela de Janete Clair, adaptada por Alcides Nogueira e Geraldo Carneiro, premiada com o “Emmy Internacional”. Atualmente, é um dos roteiristas de “Lady Marizete”, novela das 19 horas da Rede Globo, prevista para 2015. No cinema, foi roteirista dos curtas “Corra, Biba, Corra”, “Metade da Laranja”, “12 horas" e "A Maldição da Rosa". Autor de três peças de teatro: “O que terá acontecido a Nayara Glória?”, “Mãe” e do infantil “A bola mágica”.