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domingo, 12 de outubro de 2014

Choque Rosa: Quem defende as crianças LGBT?

Em Neon: domingo, 12 de outubro de 2014



Quem defende o menino que quer vestir rosa e comprar uma boneca? Quem defende a menina que brinca de lutinha? Quem defende o menino que, inadvertidamente, diz: “quero ter um namorado”? Quem defende o “viadinho”? Quem defende a “caminhoneira”? Quem defende o menino que prefere um vestido? Quem?

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A filósofa Beatriz Preciado publicou no jornal francês “Le Libération", em 2013, um texto que inspira este que agora escrevo, chamado "Qui défend l'enfante queer?". O ponto central do texto era propor-nos que, frente às defesas da “família” e da “proteção à criança", perguntássemos: Que família? Que criança? Penso, neste domingo, um Dia das Crianças pós-eleição, que tomemos esta questão como uma reflexão propositiva, afinal, assistimos nos debates eleitorais, no horário eleitoral gratuito, a repetição ad nauseam de “vamos proteger a família", "nosso dever é proteger nossas crianças". Entretanto,  que família? Que criança? O que está implícito nessa fala?

Evangélicos fundamentalistas, católicos, políticos conservadores de esquerda e direita, artistas de televisão, apresentadores de programas culinários, de programas policiais, jovens e professores na sala de aula, textos e postagens na internet, todos a dizer que querem defender “a criança", considerada, neste caso, como “ser abstrato", como uma totalidade monolítica, e, por isso mesmo, perversa. A criança e a família, defendidas por estes discursos totalizantes são, antes de tudo, ficções morais, dominadoras, normalizadoras e reprodutivas.

O ponto crítico deste discurso é a negação clara da família não-tradicional, sobretudo, a família homoafetiva, baseando-se na noção de família como seio da reprodução humana, produzem a negação das multiplicidades dos afetos, dos arranjos e do caráter, preponderantemente social da constituição das famílias e dos laços familiares e afetivos ao longo da história e das múltiplas culturas. A família, neste caso, serviria como fábrica heteronormativa. Como núcleo de reprodução, ensino, repressão, disciplinamento e ordenação para o mundo. A criança, defendida por estes discursos, é a criança que está dentro desta família.

Mas que criança é essa? Não sabemos. Eis o mais perverso do trato totalizante da “criança”: a negação da diversidade que está implícita em qualquer totalização e generalização discursiva.  A criança é, neste caso, convertida em massa passiva, em conjunto disforme a ser moldado para pertencer ao mundo, não da forma como gostaria, mas da maneira como o mundo está desenhado para recebê-la.

O direito a ter “uma mãe e um pai”, se converte, então, no direito a ter, reproduzido como obrigação, a heterossexualidade. A criança protegida por estes discursos é aquela que, não tendo voz, não tem vontade, não tem corpo, não tem preferências, é o vir-a-ser, se projeta para um futuro, regulado, biopoliticamente, por seus pais, por seus professores, por seus tios, por seus avós, pela televisão, pelos brinquedos que é obrigada a ter.

A filósofa Beatriz Preciado escreveu sobre as crianças Queer no jornal Le Libération
Preciado, em seu artigo diz: “Eles defendem o poder de educar os filhos dentro da norma sexual e de gênero, com princípios heterossexuais. Eles desfilam para conservar o direito de discriminar, castigar e corrigir qualquer forma de dissidência ou desvio, mas também para lembrar aos pais dos filhos não-heterossexuais que o seu dever é ter vergonha deles, rejeitá-los e corrigi-los. Nós defendemos o direito das crianças a não serem educadas exclusivamente como força de trabalho e de reprodução. Defendemos o direito das crianças e adolescentes a não serem considerados futuros produtores de esperma e futuros úteros. Defendemos o direito das crianças e dos adolescentes a serem subjetividades políticas que não se reduzem à identidade de gênero, sexo ou raça.” Preciado, com isso, afirma o caráter normativo da “criança” defendida pelos discursos conversadores e religiosos, faz pesar, sobre as costas das crianças “a continuidade da raça humana”, os prepara para o momento em que terão de reproduzir as mesmas noções e os mesmos conceitos.

Quando ouço discursos de “defender nossas crianças” e “a família brasileira”, composta, nestas falas, por um homem e uma mulher (sic), lembro-me da escola, num dia em que minha professora de matemática disse “Quando vocês tiverem filhos, vão precisar ensinar isso a eles” ( tratava-se de algo sobre dinheiro), e um dos meninos disse “ menos o Fernando”. Todos riram.

“Menos o Fernando” significou claramente o poder do constrangimento. “Meus trejeitos e minha voz indicavam “ele não pertence a esta norma”, indicava, “órgão excretor não reproduz”, “Deus fez Adão e Eva e não Adão e Ivo”, indicavam “Seja homem!”.

"Resta-nos ainda a pergunta: Quem defende a criança LGBT? A criança que está fora das normas? Será o um Deputado homofóbico , que sugere “uns bons tapas” para corrigir o desvio? " Será toda a indústria da culpabilização? A indústria da depressão infantil? Será o consumo heteronormativo? Os comerciais que indicam o que é ser homem e o que é ser mulher?

Quero frisar as noções de produção da culpa nas crianças LGBT, afinal, como não se sentir culpada, quando todos, a todo momento, dizem que seus desejos são inadequados? Que suas vozes são erradas? Que suas mãos não se movem da maneira certa? Como não sentir culpa?

Como não sentir culpa quando somos ridicularizados na escola, como não dizer a si mesmo “Como eu faço pra andar direito?”, ou “Eu não quero ter de engravidar uma mulher, minha avó vai ficar triste”, como não culpar a si mesmo quando olhar os muros repletos de beijos na saída da escola, e você, preocupado com as chacotas que poderão fazer se ousar declarar seu bestial desejo? Quem nos protege? Quem dá voz a estas crianças? Com que direito, presumem os pais, a sexualidade de seus filhos? Com que direito lhe presumem o gênero?

Este meu texto de dia das crianças é, antes de tudo, uma tentativa de dar voz a criança LGBT, lembrando da criança queer que eu fui. Lembrando da criança inadequada que eu fui. Quero dar voz a elas. E quero que olhem para as crianças e pensem apenas: são sujeitos de direitos, individualidades, vontades. Possuem todo um universo de corpo e desejo, não serão o reflexo de nossas vontades. São elas mesmas, livres, idiossincráticas, humanas e não bonecos a serem modelados. Elas não são um “vir-a-ser” elas já são.

Fotos: Reprodução e Imagens dos filmes Minha Vida em Cor de Rosa (Ma Vie en Rose) e Tomboy 

Por: Fernando Vieira

Fernando, tem 23 anos é gay cisgênero, ativista LGBT, professor de Língua Portuguesa, e atualmente dedica-se aos Estudos de Gênero da Teoria Queer. Tem influências de Deleuze e Foucaul, e lhe agrada Slavoj Zizek e Lacan. Busca simplificar o obscuro jargão pós-moderno, e deseja, com seus textos, propor reflexões que possam produzir caminhos.


 
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